Antônio PARREIRAS 1860-1937

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Parreiras meio século depois Retornar

A cada ano que passa fica mais claro que a sociedade brasileira (se é que no Brasil as autoridades públicas representam mesmo a sociedade) persiste no velho e nocivo hábito de esquecer nosso passado cultural. E o esquecimento, aliás, nem é a pior face do problema: muitas vezes ele é recordado com o intuito específico de ser renegado. Todo esse processo, e não apenas no que se refere à cultura, embora possivelmente tenha origem mais remota, sofreu enorme intensificação com as idéias positivistas que instalaram a República em fins do século passado.

E, efetivamente, até nosso modernismo foi também marcado por uma espécie de positivismo seletivo, através do qual se estabeleceu a glorificação da arte do século XVIII enquanto se promovia a ignorância sobre a arte do século XIX. Tais singularidades são óbvias mesmo para os estrangeiros que nos visitam hoje, como aconteceu com o então secretário de cultura de Roma, Renato Nicolini, em 1985 (conforme já citado por Pedro Vasquez no catálogo de uma outra exposição nesta galeria), que fez comentários muito pertinentes a esse respeito.

É necessário falar sobre esse fenômeno, ainda que ligeiramente, para que se fale sobre algum de nossos artistas do passado, e sobretudo para que se fale sobre Antônio Parreiras. Há cinco anos atrás, por exemplo, quando lançei meu livro sobre o pintor, houve quem se desse ao trabalho de pesquisar acusações agressivamente desabonadoras lançadas contra Parreiras no passado, para publicá-las na imprensa: foi o caso de Frederico Morais, que jamais em sua carreira como crítico de arte ocupou-se em analisar a produção dos artistas do oitocentos e naquela oportunidade concentrou suas observações em torno de uma opinião inegavelmente idiota do grande Lima Barreto.

O amargurado escritor, no início dos anos 1920, havia acusado o artista de ser um "mascate", pelo simples fato de que Parreiras era bem sucedido em termos profissionais, vendendo suas obras com facilidade e procurando sempre obter encomendas oficiais. Ora, nem discuto o mérito da acusação, que é irrelevante e equivocada tanto no Lima Barreto da década de 1920 quanto no Frederico Morais da década de 1980, mas não posso deixar de indagar: quais as razões que motivaram um e outro à busca intencional do ângulo recriminatório e suspeitoso, à exclusão deliberada da mera hipótese de reconhecer dialeticamente valores que, compreendidos como negativos ou positivos, são na verdade traços de identidade de todos nós com nossa cultura?

Antônio Parreiras - Da matine 1888

Parreiras escolheu na vida, sendo brasileiro, um caminho dificílimo para qualquer pessoa e particularmente para um artista de sua época, contrariando as tendências aparentemente irrevogáveis das normas sociais e políticas de então, que combateu e invariavelmente venceu. Recusou as atraentes profissões burguesas que lhe quiseram impingir, lutando para ser exclusivamente um pintor e atingiu seu objetivo; foi pobre, sem ostentação de pobreza, e tornou-se rico, sem ostentação de riqueza; pleiteou auxílio do governo monárquico para estudar no exterior, tal qual obtinham dezenas de outros artistas, e não sendo atendido aperfeiçoou-se na Europa com recursos obtidos através de seus trabalhos; fez dezenas de exposições, foi reconhecido no estrangeiro e escreveu, polemizou e defendeu suas idéias até os 77 anos de idade. Jamais foi um conformista!

Como ele próprio dizia, gastou com tintas e pincéis o que havia ganho com tintas e pincéis, trabalhando para poder trabalhar. E neste ano completa-se meio século de sua morte, o desaparecimento de um artista que na verdade criou em nossa arte um tipo de interesse pela paisagem brasileira que jamais existira anteriormente, que revelou ao Brasil imagens de uma história de rebeldia e insubmissão [1] que o país mesmo hoje insiste em ignorar, e que também demonstrou que em suas atividades era perfeitamente possível o profissionalismo, no melhor sentido contemporâneo do termo.

Gastou com tintas e pincéis o que havia ganho com tintas e pincéis, trabalhando para poder trabalhar.

Creio que comemorar este cinquentenário é sem dúvida alguma uma obrigação ética nacional, como tantas outras que no entanto não se realizaram e infelizmente tornam gigantesca nossa amnésia cultural e monstruoso o débito em relação à identidade de nossa cultura. As palavras do diretor da galeria, em sua apresentação, parecem-me perfeitas quando diz que escolheu a homenagem a Parreiras como um símbolo de todas as outras homenagens que gostaria de ter feito e não teve possibilidade de concretizar.

Da exposição fazem parte onze desenhos, datados de 1914 a 1932, inclusive estudos preliminares para as pinturas Os Aventureiros (só executada em 1936, com o título de Os Invasores), Agonia (pintada em 1922), e O Missionário (que Parreiras não chegou a realizar). Quatro destes desenhos estão assinalados pela mão do artista como íntimos, ou seja, trabalhos que não desejava expor ao público à época em que foram executados e dos quais não desejava desfazer-se, pois permaneceram até hoje em poder de seus descendentes. Além destes, foram selecionados também dois estudos preparatórios para a decoração do Instituto Nacional de Música, no Rio de Janeiro, concluída em 1922.

Antônio Parreiras - Calme du soir 1911

Dentre as catorze pinturas, datadas de 1888 a 1936, duas merecem especial atenção: uma paisagem realizada na Itália durante a primeira viagem do artista ao exterior, cujas características formais se aproximam de duas obras de sua autoria que até então eram conhecidas apenas através de documentação escrita (poderia tratar-se, segundo descrições, tanto da tela intitulada Messidor, inspirada nas Geórgicas, quanto da paisagem Da Matine, ambas pintadas em Roma), e a famosíssima Calme du Soir, de 1911, que participou do Salon de la Societé Nationale des Beaux Arts, em Paris.

Outras pinturas incluídas na mostra demonstram a incansável disposição de Parreiras para viagens e excursões: Veneza (1889), Teresópolis (1896, certamente do mesmo período no qual realizou as Sertanejas, hoje no Museu Nacional de Belas Artes), Barra Mansa (1898, época das primeiras tentativas no âmbito da pintura animalista), Saquarema (1904), Moret (França, 1915) e Niterói (1932), a cidade em que nasceu e que nunca abandonou definitivamente embora tivesse possuído residência e ateliê permanentes na capital francesa.

Este resumo, assim, pode fazer-nos recordar do notável pintor e quem sabe colaborar para a redução dos efeitos daquela espécie de esquecimento compulsivo a que me referi no primeiro parágrafo deste texto. Acredito com convicção que recordar a obra de Antônio Parreiras, como recordar a produção e a atividade de todos os nossos artistas do passado, é etapa fundamental para que possamos refletir sobre o presente e o futuro da arte brasileira, articulando talvez a única oportunidade verdadeira e concreta de assumirmos sem hipocrisia ou preconceito nossa identidade cultural neste campo, seja ela qual for.

CARLOS ROBERTO MACIEL LEVY

NOTAS

[1] Pintou, de Zumbi e Felipe dos Santos a frei Miguelinho, uma galeria revolucionária que não encontra similar em nossa história da arte.

Texto originalmente publicado no catálogo da exposição Antônio Parreiras: Comemoração do Cinquentenário de Morte do Artista, Acervo Galeria de Arte, Rio de Janeiro RJ, dezembro de 1987-janeiro de 1988, p.5-8. Copyright © 1987-2013. Todos os direitos reservados.

Imagens de obras de arte

Antônio Parreiras - Da matine, 1888
óleo sobre tela 67 x 90 cm
assinada e datada no canto inferior direito; assinada, datada e titulada em etiqueta no chassis
Coleção particular, Rio de Janeiro RJ (fotografia de Vicente de Mello)

Antônio Parreiras - Calme du soir, 1911
óleo sobre tela 60 x 90 cm
assinada e datada no canto inferior direito
Coleção particular, Niterói RJ (fotografia de Jaime Acioli)