Antônio PARREIRAS 1860-1937

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Exposição Sociarte 2013: amadorismo absurdo e arrogante Retornar

Uma das salas na exposição Sociarte

Não falarei aqui especificamente sobre a questão de pinturas falsas, que é assunto muito mais grave e do qual já tratei preliminarmente em texto anterior. Até mesmo um problema relevante de conteúdo já foi abordado, ou seja, a impropriedade da fictícia entidade “família Parreiras”. Restam as características formais, técnicas e simbólicas da mostra. Vou limitar-me a abordar dois aspectos elementares: catálogo e ambientação. Embora básicos, estes fatores receberam tratamento de um amadorismo inacreditável. Por conseguinte, também nisso em vez de homenagear a memória de um dos maiores pintores brasileiros de todos os tempos, o que se fez foi insultá-la da maneira mais relapsa e grosseira. Duvido que algo assim já tenha ocorrido em relação a qualquer outro artista tão importante em nosso país. Nas poucas vezes que escrevi análises críticas sobre exposições vinculadas à história da arte no Brasil, reconheço que talvez tenha sido sempre excessivamente detalhista e prolixo. Mas isso decerto não acontecerá desta vez, até porque não fosse a questão das pinturas falsas eu não me ocuparia de assunto tão primitivo e, pelo menos para mim, verdadeiramente repugnante.

O primeiro elemento a ser considerado diz respeito ao tipo de catálogo publicado — até porque seu alcance temporal é imenso, exponencialmente maior do que o evento a que se refere. Acontece que não é um catálogo, pois em exposições tal impresso possui natureza e características bem definidas há séculos: catálogo é uma publicação cuja finalidade primordial é registrar e documentar as obras de arte que constituem uma exposição, reproduzindo sua lógica, sequência e hierarquia. Para isso, o que se faz é associar números às especificações dos objetos apresentados ao público. Essa a razão pela qual a totalidade dos catálogos que nossos maiores pintores do passado fizeram imprimir, como bem é o caso de Antônio Parreiras, resumiram-se a meras folhas soltas ou folhetos dobrados, quando não simples cartões de pequeno formato.

O dito catálogo da mostra da Sociarte, não obstante assuma tal condição explícita na seção de créditos (p.100), inventou uma categoria editorial própria: não numera os itens expostos; estes itens não correspondem à ordenação física na exposição; e, muito pior, recorre a um peculiar expediente que provoca notável confusão ao incluir reproduções fotográficas e respectivas identificações de inúmeras obras que não estão na exposição! Não estou falando de uma modesta escala comparativa, e sim da gritante diferença entre 84 reproduções de pinturas e desenhos no catálogo (20 coleções particulares) e 54 ou menos pinturas na exposição (16 coleções particulares).

Desde quando coleções particulares dispõem de isenção de responsabilidade ética e moral em relação às coleções públicas?

Sim, é isso mesmo: considerando os três pintores, a exposição inclui menos de 65% das obras reproduzidas no catálogo. No que se refere a colecionadores, verifica-se que 20% das coleções indicadas no catálogo não fizeram parte da exposição. E não deixa de atrair bastante atenção o fato de que um único colecionador possua 40% das obras reproduzidas e 28,1% das expostas. Devo esclarecer que doravante só me interessa e só me referirei ao conjunto de obras indicadas sob o nome de Antônio Parreiras (53,5% do catálogo e 59,2% da exposição). Na verdade, ao visitar a Fundação Maria Luisa e Oscar Americano, em 20/11/2013, sequer olhei para qualquer uma das pinturas rotuladas como de autoria de Dakir Parreiras ou Edgard Parreiras.

Os textos das curadoras Ana Paula Nascimento e Ruth Sprung Tarasantchi versando sobre Antônio Parreiras são inócuos e redundantes. Dentre uma ou outra platitude e ocasionais tautologias, mais ou menos equivalem a redações escolares. Evidentemente isto não é nenhum crime e pode até ser um predicado estilístico decorrente da dupla autoria. Mas tornam-se perigosamente audaciosos e definitivamente sinistros quando exemplificam supostos atributos da produção de Antônio Parreiras referindo-se a pinturas falsas. Nestes casos (p.22 e 26) os limites da ética e da honestidade intelectual são transgredidos de modo injustificável. Pois se as senhoras curadoras não sabem distinguir pinturas autênticas de grosseiras falsificações, qual a razão de terem se aventurado em domínio de tamanha responsabilidade? Afinal, pelo menos em tese, selecionaram pinturas para formar um conjunto cujo único propósito lícito seria decodificar e comunicar ao público significados estéticos, temáticos e históricos da produção de “…um artista que ambicionou e conseguiu ser tão grandioso e original quanto seu próprio país” (nas belas palavras do estudioso Sylvio Fraga Neto). A dúvida é inevitável: estiveram ou estarão as curadoras conscientes do fato de que contribuíram para legitimar falsificações ipsis litteris?

Aliás, a própria curadoria também é controversa nesse aglomerado de contradições que é a exposição da Sociarte. No texto de apresentação publicado no catálogo (p.9), José Oswaldo de Paula Santos, primeiro vice-presidente da entidade, menciona exclusivamente o nome de Ruth Sprung Tarasantchi. Todavia, nos créditos de realização (p.100) aparecem bem nítidos os dois nomes que citei no início do parágrafo anterior. Afinal, quantas são as curadoras? Bem, se a peculiar configuração do catálogo sem dúvida pode ser imputada a Ana Paula Nascimento, que está indicada nos créditos como Coordenadora Editorial, a insensatez das exemplificações conectadas a falsificações cabe a ambas as curadoras, que assinam em conjunto os textos e estão referidas nos créditos em igualdade de condições. No que se refere à irresponsabilidade na seleção de pinturas, quer me parecer que o crédito de Diretora de Arte da Sociarte confere à senhora Tarasantchi certa primazia em relação à sua companheira de trabalho, pois é razoável imaginar-se que ela conheça melhor e há mais tempo a constituição das coleções pertencentes aos membros da Sociedade dos Amigos da Arte de São Paulo.

A publicação é vendida (R$50,00) na saída do circuito de visita à sede da fundação, no piso térreo logo antes de uma agradável espécie de cafeteria ao ar livre. Isso demonstra que não foi mesmo intenção dos organizadores oferecer ao público um catálogo para orientar e complementar com informações pertinentes à visitação. Restou ao impresso a suposta finalidade de registrar e documentar a mostra, opção inviabilizada pelas múltiplas inconsistências já comentadas. Portanto, como documento, o catálogo de imediato produz duas consequências nefastas: faz crer que da exposição fizeram parte quase o dobro das obras efetivamente expostas e, muito pior, induz a posteridade a associar pinturas falsas, como se autênticas fossem, ao nome do grande Antônio Parreiras. Não hesito em afirmar que é a publicação mais irresponsável e daninha, versando sobre arte brasileira, já impressa em todos os tempos.

Quanto à ambientação, a mostra ocupa três exíguas saletas cuja área total não ultrapassa uns 76m2 (talvez cerca de 44 metros lineares). Tendo em conta apenas as obras atribuídas a Antônio Parreiras, já seria um escandaloso desrespeito à memória do artista e ao próprio público tão reles espaço para acomodar 32 pinturas. Iluminação medíocre e inadequada; teto baixo e opressivo; montagem das pinturas em grupos superpostos nas paredes; etiquetas de identificação pouco legíveis e irregularmente distribuídas; tudo sugere os baixos padrões de uma mera galeria de arte comercial. Por diversas vezes me senti incomodado pela evocação daquele clima efêmero e negligente típico dos leilões de arte menos briosos. Uma das lâmpadas estava queimada, deixando na semi-obscuridade duas ou três pinturas, uma delas quase impossível de distinguir. Chamei a atenção de uma monitora de sala para a irregularidade: ela sorriu com simpatia e um arzinho cúmplice, sem se mover de onde estava…

Particularidades desta espécie em geral provêm da carência de recursos materiais, mas não creio que este seja o caso. Em qualquer área do conhecimento, a visão de especialistas e profissionais é necessariamente muito mais aguda e severa do que a dos diletantes. Contudo, nem escassez de recursos nem obstáculos de organização podem justificar situações que tangenciam o anedótico: uma das pinturas ostentava, no centro da haste inferior da moldura (onde é antigo costume fixar plaqueta de latão com o nome do autor gravado), etiqueta retangular de papel dourado com a inscrição Ralph Lauren em relevo! Indagada sobre isso, uma das funcionárias da Fundação Maria Luisa e Oscar Americano disse não saber informar nada sobre o assunto pois se tratava de exposição de origem externa.

Visitas guiadas costumam ser poderoso recurso educativo em museus e instituições culturais. No período durante o qual permaneci no ambiente da exposição, ele foi percorrido por dois ou três pequenos grupos de visitantes conduzidos por guias. Embora este não fosse o foco de minha observação, teria sido impossível deixar de notar o extremo descaso e a superficialidade aplicados àquilo que deveria ser intensa fonte de motivação e esclarecimento. O que vi foram visitantes se dispersando pelo espaço das três pequenas salas, com no máximo dois ou três deles prestando alguma atenção ao discurso hesitante e mortiço da guia. Não quero ser injusto com nenhuma das partes, mas a verdade é que os visitantes pareciam muito entediados, sendo difícil definir uma origem de causalidade: guias desmotivados por público desinteressado ou público desmotivado por guias desinteressados? A esse respeito recordo-me de ter concluído que o que se passava era, enfim, dos males o menor. Sim, porque entre horrorizado e enfurecido eu já havia anotado duas capciosas monstruosidades verbais atiradas contra os pobres visitantes: “No século XIX eram paisagistas em Niterói…” e “…o mais velho deles”. Pois é, se algum dos visitantes presentes naquele momento memorizou algo, lamentavelmente agora pensa que sabe que no século XIX existiu uma família de paisagistas niteroienses, o mais velho deles chamado Antônio…

Qual conclusão desponta de tudo isso? Pode ser que a exposição seja trivial manifestação de vaidade, como tantas outras já existiram entre nós marcadas por amadorismo e ignorância. Mas esta se apresenta inegavelmente revestida por dissimulada arrogância, na pretensão de abordar um tema tão grandioso quanto a pintura de Antônio Parreiras, sob total carência de recursos intelectuais, técnicos, profissionais e materiais. Desde quando coleções particulares dispõem de isenção de responsabilidade ética e moral em relação às coleções públicas? Muito pelo contrário, pois, não sendo instituições especializadas, suas responsabilidades perante a sociedade e as autoridades são muito maiores. E, neste particular, o Brasil até agora não tem sido o país culturalmente árido e descuidado que muitos imaginam. Basta lembrar dois exemplos históricos extraordinários, bem separados no tempo: as impecáveis coleções particulares da baronesa de São Joaquim e do empresário Paulo Fontainha Geyer, respectivamente doadas à antiga Escola Nacional de Belas Artes em 1922 e ao Museu Imperial em 1999. A primeira colocou-nos logo abaixo da França na posse de notável conjunto de marinhas de Eugène-Louis Boudin (1824-1898), precursor do Impressionismo; a segunda assegurou-nos o mais amplo conhecimento da iconografia nacional pertinente a natureza, urbanismo, arquitetura e costumes do Primeiro ao Segundo Reinado.

A argumentação aqui desenvolvida, complementando meu texto anterior a respeito de aspectos muito mais tenebrosos na exposição analisada, se encerra com a certeza de que os membros da Sociedade de Amigos da Arte de São Paulo devem explicações públicas aos cidadãos brasileiros, em especial aos fluminenses — para não falar da imperiosa necessidade de atos concretos de reparação. É preciso saber se todos os colecionadores vinculados à entidade apoiaram ou apoiam iniciativa tão desastrada, tanto mais aqueles que possuem excelentes pinturas autênticas de Antônio Parreiras e também foram muito prejudicados. É preciso saber se a Sociarte como um todo se alinha ao colecionismo criterioso e ético, honrando sua origem e seus fundadores já desaparecidos, ou se, pelo contrário, assume uma eventual decadência de princípios morais que ousaria ignorar a extensão do malefício cometido, permanecendo indiferente tal qual ele não tivesse existido. Aguardemos.

Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 2013
Carlos Roberto Maciel Levy